Política
Alvo de Bolsonaro, Inpe é palco de disputas entre civis e militares desde a ditadura
Pivô de uma das maiores crises institucionais do governo de Jair Bolsonaro (PSL), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) nasceu e cresceu com o Programa Espacial Brasileiro (PEB) – e, assim como o PEB, tem as atividades atravessadas por certa disputa entre interesses civis e militares. As duas metades tiveram uma cronologia pareada, colaboraram entre si e, em alguns momentos, se estranharam por conta dos diferentes entendimentos e objetivos.
Essa disputa aparece como pano de fundo dos episódios recentes envolvendo o Instituto, como a briga do autointitulado “capitão motosserra” com os números da “inflação ambiental”, e a fixação do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, por contratar um sistema privado estrangeiro de sensoriamento remoto para a Amazônia.
Para o jornalista científico Ulisses Capozzoli, o episódio foi fabricado para, finalmente, jogar no colo das Forças Armadas o Instituto, hoje vinculado à estrutura do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Assessor de imprensa do centro de pesquisa durante o governo José Sarney (1985-1990), ele postou nas redes sociais um relato sobre um acontecimento entre 1988 e 1989 que resultou na demissão do então diretor Marco Antonio Raupp.
O país estava para concluir um satélite de coleta de dados e precisou deixá-lo em suspenso, porque o desenvolvimento do veículo lançador que o levaria para o espaço estava atrasado. Dois ministros-chefes do Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa, ao qual estava submetida a área espacial e que em 1999 daria lugar ao Ministério da Defesa), o brigadeiro Paulo Roberto Camarinha e seu sucessor, o almirante Valbert Figueiredo, enfureceram-se com o empenho de Raupp em viabilizar o lançamento do artefato.
Em seu testemunho, Capozzoli também relembra a suspensão e a reformulação, anos antes, da cooperação brasileira com a França, que previa o desenvolvimento de um foguete de combustível líquido, como o que levou astronautas estadunidenses à Lua. “Mísseis militares, portando bombas atômicas ou outros explosivos, são abastecidos com combustível sólido e não líquido”, sublinhou.
“Por que o Brasil fez essa opção?”, pergunta ele. “Porque queria desenvolver mísseis capazes de transportar uma bomba atômica, um dos sonhos do governo dos generais com o propósito de supremacia na América Latina, em particular sobre a Argentina”, respondeu. A intenção de deter tal tecnologia já foi confirmada por figuras centrais da inteligência militar e espacial como o brigadeiro Hugo Piva.
A Terra é azul
Hoje unidade de pesquisa do MCTIC, liderado pelo ministro e ex-astronauta Marcos Pontes, a história do Inpe remonta a uma época em que a pasta nem existia. Mais precisamente a 3 de agosto de 1961 – ano em que o soviético Yuri Gagarin tornou-se o primeiro ser humano a viajar pelo espaço –, quando o Grupo de Organização da Comissão Nacional de Atividades Espaciais (Gocnae) foi nomeado pelo presidente Jânio Quadros (jan/1961-ago/1961). As áreas de atuação designadas eram radioastronomia, astronomia, rastreio ótico de satélites e comunicações por satélite.
O grupo virou apenas Cnae, comissão vinculada à Presidência da República e com sede em São José dos Campos (SP), em 1963. Mais tarde a Comissão seria extinta, dando origem ao Instituto, ainda subordinado ao então Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), dez anos depois da primeira célula.
Na linha do tempo das realizações (e fracassos) espaciais brasileiras, antes de sua oficialização com o nome atual, o Inpe embarca cargas em foguetes de sondagem lançados a partir da Barreira do Inferno (RN), começa a receber imagens meteorológicas e organiza seus primeiros cursos de pós-graduação.
Em 1969, com a corrida espacial a toda, os Estados Unidos fazem de Neil Armstrong o primeiro homem a pisar na lua e enviam uma sonda a Marte – e seus rivais soviéticos, um robô a Vênus. Quatro anos depois, os EUA lançam sua estação espacial Skylab, habitada por astronautas durante nove meses. No Brasil, o Inpe implanta sua estação de recepção de dados em Cuiabá (MT) e passa a receber imagens do satélite norte-americano Landsat.
Em 1974, o centro inaugura seu Laboratório de Processamento de Imagens. Datam dessa década, ainda, o primeiro Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto e o trabalho inaugural sobre o desmatamento na Amazônia com base nessa tecnologia.
No ano seguinte, é aprovada a Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), um marco do programa, que consistiria em construir e pôr em órbita um foguete e um satélite nacionais a partir de uma base própria.
“Sempre se discutiu qual era o papel do Programa Espacial Brasileiro. Até 1994, embora fosse comandado pelo Estado Maior das Forças Armadas, o PEB se declarava como um programa civil. Mas não era”, diz o matemático Raupp, que passou por quase todos os lugares de fala não-militares desse debate.
Raupp atuou como pesquisador titular do Inpe, dirigiu o instituto de 1985 a 1989 e, no governo Dilma Rousseff (PT), presidiu a Agência Espacial Brasileira (AEB) de 2011 a 2012 e comandou o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) de 2012 a 2014. Agora está à frente do Parque Tecnológico de São José dos Campos – intimamente ligado à cadeia produtiva aeroespacial –, além de ter presidido a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) de 2007 a 2011.
“Houve muitos momentos em que a utilização militar do projeto espacial influenciou muito negativamente para o Brasil ter acesso à tecnologia de ponta, não dava para dizer que tínhamos um programa civil executado dentro do CTA.” Ligado à Força Aérea Brasileira (FAB), o Centro Técnico de Aeronáutica é hoje Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA).
Raupp identifica a criação da AEB em 1994, no governo Itamar Franco (1992-1995), como um esforço para superar essa dubiedade, institucionalizando o compromisso com o desenvolvimento de tecnologia espacial em âmbito totalmente civil. “A área militar continuou com poder no âmbito da lei. Mudaram o nome, mas o resultado não mudou muito. No entanto, só de mudar o controle para civil já foi um progresso”, pondera.
Fusão
Quando presidente da AEB, ele advogou pela fusão com o Inpe, e o então ministro Aloizio Mercadante encomendou um estudo sobre a possibilidade. Segundo conta o cientista, a ideia seria o instituto contribuir com recursos físicos e humanos, dotando a agência de corpo técnico e garantindo, assim, os meios para executar a responsabilidade coordenar o PEB. O instituto daria origem a “filhos” de escopo mais específico, num organograma próximo ao da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos.
“Era a forma mais fácil de capacitar uma agência executiva”, justifica. “Até então a AEB não tinha condições de cumprir esse papel, apenas recebia e repassava as verbas.” A resistência de servidores e entidades à proposta, entretanto, demoveu a presidente Dilma de submetê-la ao Congresso Nacional.
Ainda assim, a Agência teve sua centralidade e seus quadros reforçados. “Desde então, conta com uma equipe técnica que permite controlar as contratações de projetos que são aprovados para o PEB. Então essa interpretação, na minha visão, está resolvida. Hoje é a AEB que comanda o programa”, conclui.
Raupp declara-se ainda favorável àquele desenho institucional, mas aponta-o como ainda mais distante hoje. “Seria bom incorporar o IAE e outros institutos como esse, mas eles têm projetos na área de defesa, então não dá para ter esse braço em um programa civil. Também acho que o DCTA tem de ser autônomo para desenvolver pesquisa na área de defesa. Não sou contra existir um programa militar, mas acho que deveria haver um programa de total responsabilidade das Forças Armadas”, acrescenta.
Irmão militar do Inpe, o IAE foi criado em 1969 como unidade do CTA, que já tinha 23 anos e contava com o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), voltado à formação de recursos humanos qualificados em áreas de ponta. Originalmente Instituto de Atividades Espaciais, o IAE viria a se tornar o Instituto de Aeronáutica e Espaço ao incorporar o Instituto de Pesquisas e Desenvolvimento, em 1991.
Voltando ao governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), 20 anos antes: se com uma mão confirmou o caráter civil do Inpe, com a outra o ditador criou a Comissão Brasileira de Atividades Espaciais (Cobae), vinculada às Forças Armadas, com o objetivo de coordenar e acompanhar a execução do programa espacial – missão transferida em 1994 à Agência Espacial Brasileira.
A ala militar manifesta insatisfação com a governança em vigor. Em audiência pública no Senado, em agosto de 2017, por exemplo, o então comandante da Aeronáutica, o brigadeiro Nivaldo Rossato, mostrou numa apresentação o Programa Estratégico de Sistemas Espaciais (Pese), liderado pela Força Aérea, em pé de igualdade com o Programa Nacional de Atividades Espaciais (Pnae), que é coordenado pela AEB e, ao menos em tese, estabelece as diretrizes para o programa espacial como um todo.
Rossato defendeu a criação do Comitê e do Conselho Nacional de Espaço (CNE), com ascendência sobre a AEB, à qual caberiam os acordos de cooperação internacional. Segundo o oficial, tratava-se de reforma em andamento, a partir de recomendação de grupo de trabalho interministerial mantido no governo Dilma.
“Desde a demissão de Raupp no Inpe, essa conexão entre o lado civil, concentrado no instituto, e o militar, no IAE, nunca se restabeleceu”, observa o engenheiro aeronáutico José Bezerra Pessoa Filho, cuja trajetória profissional e acadêmica é toda ligada ao DCTA – ele fez mestrado no ITA, foi tecnologista sênior do IAE por mais de três décadas, chefiou a Divisão de Sistemas Espaciais do instituto e se aposentou em 2018 como coordenador da Gestão do Conhecimento.
“Os caminhos dessas instituições se cruzaram quando foi criado o Programa Espacial Brasileiro. Hoje falta um projeto integrador”, explica. Pela sua leitura, com o abandono do tripé previsto na Missão Espacial Completa, o que resta são atividades espaciais.
Churrascaria vegetariana
Para o pesquisador, não se trata de culpar um lado ou outro. “Todos os países desenvolveram atividades espaciais por motivos bélicos, de segurança”, enfatiza, listando Estados Unidos, União Soviética (hoje Rússia), China, Índia, Japão, Coreia do Norte, Coreia do Sul, Irã, França – na liderança do programa espacial europeu – e Alemanha. “Tem a ver, antes de qualquer coisa, com a área de defesa. Se estabelece um programa espacial sem ter isso em mente, você foi a uma churrascaria comer comida vegetariana”, argumenta.
A seu ver, além de mais clareza de objetivos, a questão passa pela envergadura orçamentária. “Não dá para achar que vai fazer com US$ 100 milhões de orçamento. Se você não chega a bilhão, é outro assunto”, agrega.
Darcton Damião, o diretor interino do Inpe, costura as duas vertentes do programa espacial em sua trajetória. Oficial aviador pela Academia da Força Aérea, fez aperfeiçoamentos e especializações ligados a satélites, observação da Terra, projetos espaciais, interpretação de imagens e tecnologia de radares, entre outros mais focados em gestão, estratégia e liderança. Cursou mestrado em sensoriamento remoto no Inpe. Foi pesquisador e diretor do Instituto de Estudos Avançados do DCTA, e leciona como visitante no ITA.
Após ser confirmado para o cargo, em fala a funcionários do instituto do MCTIC, o militar atribuiu a uma “pane de comunicação” a crise que derrubou seu antecessor e defendeu que polêmicas entre outros órgãos do governo e a imprensa fiquem do lado de fora. Prometeu que o centro continuará a fazer ciência e reiterou a confiança no Prodes, o sistema de detecção do desmatamento em operação desde 1988: “Eu não consigo entender que alguém vai chegar depois de 30 anos e sacar – segundo semestre de 2019 – uma solução de [R$] 8 milhões/ano melhor do que esta que foi amadurecida, testada em combate. Então, eu não acredito”.
O Ministério do Meio Ambiente, por sua vez, está degustando ferramenta paga da empresa Planet com vistas a substituir as nacionais gratuitas (e adotadas por vários países), enquanto numerosos pesquisadores e entidades declaram apoio à manutenção destas.
Ao tomar posse, Damião – que em seu doutorado, na Universidade de Brasília (UnB), analisou técnicas de predição (identificação de tendências) de desmatamento –disse que não há nada de errado com os dados divulgados, e sim com a interpretação. O ministro da Ciência, Tecnologia, Inovação e das Comunicações, Marcos Pontes, falou em ampliar o desenvolvimento de satélites – e na possibilidade de entregar os alertas de desmatamento ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) cinco dias antes da divulgação, fluxo adotado antes da atual política de total abertura. Vale lembrar que, desde março, a agência de fiscalização ambiental está sob “mordaça” do MMA, tolhida de qualquer comunicação autônoma, por decisão do ministro Ricardo Salles.
Entre fardas
Além do chefe direto, o astronauta Pontes, Damião terá de se reportar a outro militar. Desde janeiro, a AEB é pilotada por um oficial da reserva, o coronel Carlos Moura.
Formado em engenharia de infraestrutura aeronáutica e mestre em engenharia de software pelo ITA, Moura sinaliza uma gestão sem altos voos. Em entrevista ao portal Teletime logo que assumiu a função, aponta escassez de recursos e promete a inspiração em necessidades da população, deixando de lado o histórico foco em pesquisa e desenvolvimento (P&D).
“Os institutos tinham algumas linhas de pesquisa e também tinham o desafio de dominar uma tecnologia de acesso ao espaço. Com a cooperação de outros institutos e universidades, se tentava chegar a algum produto. O que percebemos é que esse modelo se esgotou, pois a capacidade de investimento do Estado se reduziu muito, as formas de contratação de especialistas também ficaram pouco flexíveis”, justifica.
O coronel fala, ainda, em estreitar a relação com o segmento de defesa e unir esforços em projetos que atendam as demandas militares e civis – segundo conta, nos últimos dois anos a AEB e o Ministério da Defesa (MD) trabalham nesse sentido. Ele anuncia uma reformulação do Pnae, incorporando o Pese (a atual porção mais militarista) como um capítulo.
Uma transferência formal do Inpe para a estrutura do MD exigiria aprovação pelo Congresso. Mas na prática – retomando a analogia com o churrasco vegetariano – o futuro próximo vai mostrar quão civil pode ser uma gestão recheada de fardados, cujo comandante em chefe acredita que a Terra é verde-oliva.
Fonte: Brasil de Fato
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