Brasil
‘A bicha não volta pro gueto nem a mulher pra cozinha ou o negro pra senzala’, diz Laerte, protagonista do 1º longa brasileiro da Netflix
Faz sete anos que a cartunista Laerte Coutinho iniciou a transição até declarar-se “transgênera, transgênero, não sei… enfim, uma pessoa transgênero”.
Um dos momentos mais marcantes desse processo ocorreu logo no início, quando ainda se via só como um homem que gostava de vestir-se de mulher e experimentava fazer isso em público. Ela saía de um banheiro quando cruzou com um senhor idoso.
“Ele parou e checou a porta. Eu disse: ‘O senhor está no banheiro certo’. Ele disse: ‘Eu sei. Acho que estou no tempo errado”, conta Laerte à BBC Brasil, rindo.
“É bonitinho. As pessoas ficam atônitas. Precisamos ter paciência e sensibilidade, porque elas podem ser nossas aliadas. O meu filme de certa forma pode ajudar com isso.”
Laerte-se é o primeiro documentário de longa metragem original da Netflix produzido no Brasil e estreia nesta sexta-feira (19/5).
As diretoras Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum mostram a cartunista de 65 anos às voltas com uma reforma em casa e a dúvida se deve ou não fazer um implante de seios.
A câmera acompanha Laerte enquanto ela explora a identidade feminina e a sua própria.
Essa investigação começou ainda em suas tirinhas, em especial com o personagem Hugo, que fazia isso com frequência, enfrentando situações do dia-a-dia com sua versão feminina, a Muriel.
O estalo veio depois de receber um email de um grupo de crossdressers – homens que se vestem como mulheres. “Eles liam o Hugo e escreveram dizendo: ‘Olha, nós achamos que você pode ser crossdresser.”
Acabou descobrindo-se transgênero, algo que diz a ter pego de surpresa. Laerte sabia desde a adolescência que era gay, e entender-se mulher “veio como um bônus”.
“Não sou transexual. Nunca me declarei assim. Estou sob um guarda-chuva que inclui a travesti, o crossdresser, a drag queen, o drag king, e estou satisfeita com isso.”
A princípio, a transformação ocorreu de forma mais privada – ou “clandestina”, como ela diz no filme, algo que deixava Laerte “mais conformada do que satisfeita”.
Tornou-se de fato pública a partir de sua primeira entrevista sobre o assunto, em 2010, quando foi fotografada já de cabelos longos, maquiagem e roupas femininas – época em que a personagem Hugo, um alter-ego de Laerte, também passou a ser permanentemente Muriel na tirinha. O filme é o ápice de processo até agora.
“Estamos vivendo um tempo ambíguo, em que os conservadores e os libertários estão se organizando. Ninguém mais quer ficar no seu canto”, diz à BBC Brasil.
“A bicha não volta para o gueto ou a mulher pra cozinha nem o negro para a senzala.”
Laerte conta que se passaram “quatro ou cinco anos” entre a proposta de fazer o documentário e a primeira vez que o assistiu, no início deste ano. “Ficou muito bonito. Abre uma janela para quem está perplexo e mostra que aqui não tem truque.”
Laerte não é estranha a estar na televisão. Ela foi roteirista de programas como TV Pirata, Sai De Baixo e TV Colosso. Mas desta vez ela não está nos bastidores. Está no palco.
“Tem um lado exibicionista que fica feliz com isso, mas sugeri fazer um filme sobre ser transgênero, porque não queria que fosse só sobre mim, uma ego trip.”
Mas a cartunista não tem mais televisão em casa. Ela se desfez da que tinha há três anos e ia comprar uma nova, mas “achou o vazio interessante”.
“Nunca tinha ficado sem TV desde os 5 anos de idade, resolvi experimentar. Era um vício, ligava só por ligar. Hoje, meu vício é a internet.”
Laerte declarou-se uma mulher transgênero quando já era um homem de meia-idade. Havia se casado – e se separado – três vezes. Já tinha três filhos.
Ela acredita que fazer isso quando estava mais madura e estabelecida profissionalmente e já tinha uma “rede sólida” de amigos e familiares ajudou (e ainda ajuda) a amenizar o preconceito.
“Quando querem me ofender, me chamam de bicha comunista. Mas isso não me ofende, eu sou”, diz Laerte.
“Não gosto quando questionam minha ética ou colocam em dúvida minha sinceridade, quando me chamam de baranga moral. Por que me chamam disso, sabe? Isso, sim, me ofende.”
Fonte: BBC
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